sexta-feira, 1 de julho de 2016

Uma noite com os pobres

Certas lições necessitam ser revistas periodicamente pois nos acostumamos fácil com o ambiente quando melhoramos de vida.

Esta semana eu prometi à Mariah que iria comprar o Disney Gogo's do Mickey e Minie dourados e que foram uma febre no ano passado. Encontrei por 18 reais o par e, para economizar nas despesas postais, decidi buscar pessoalmente num bairro próximo ao meu trabalho e a minha casa, porém um tanto contra-mão, como chamam popularmente aqueles locais de difícil acesso a despeito de perto.

Procurei na internet, mas as linhas de ônibus, o trânsito e o sentido das ruas mudaram tanto na cidade nos últimos meses que eu me senti inseguro. Algumas informações claramente estavam desatualizadas. Felizmente eu tenho a amizade do Farinha, a maior autoridade viva quando o assunto é deslocamento pelo subúrbio carioca.

- Pega o 313 que não tem erro!

Eu, acostumado com o relativo conforto dos ônibus que eu pego diariamente, embora imundos, pichados com textos pornográficos e velhos, não são superlotados e estressantes. Esqueci completamente como as condições de vida de quem mora no subúrbio profundo são ruins. Entrei uns 2 ou 3 pontos do início da viagem e isto me gerou a doce ilusão que não iria lotar apesar do relógio marcar umas 18h. Acreditei que não seria necessário sentar próximo à porta de saída. Ao chegar na Central o desengano desapareceu. Alguns metros depois nova parada num ponto próximo a uma universidade privada e mais passageiros. "Não, não deve entrar mais ninguém na Leopoldina", pensei, já preocupado e montando um mentalmente um sofisticado procedimento para saltar logo depois.

O ônibus estava tão cheio que o deslocamento foi quase impossível e eu considerava a possibilidade de saltar depois do local desejado. A educação fica em segundo plano e o empurrão forçando a passagem entre pessoas sofridas e exaustas que estão em pé no corredor vem logo em seguida do pedido de licença. Vamos em frente até a proximidade da escada. Parando o ônibus tenho que aguardar as pessoas levantarem da escada de descida e saírem do ônibus temporariamente para me deixar passar. No solo, mas não mais seguro. As lojas já estavam fechadas e o ambiente me lembrava cenário de filmes do submundo de Nova Iorque dos anos 1980. Embaixo da Linha Vermelha, o que eu via eram sucateiros, lixo, população de rua e iluminação deficiente.

De fato, a dica do Farinha foi providencial e certeira, estava a apenas cem metros do endereço de destino. Comprei os Gogo's e saí. Com um pouco de medo e cheguei a considerar a possibilidade de pegar um táxi, porém a economia por ir buscar pessoalmente se perderia e segui em frente, rumo ao ponto do 665. Prostitutas já estavam nos seus postes e árvores de costume e o meu destino era longe, em frente ao hospital Quinta D'Or. No meio da caminhada um taxista parou logo na minha frente e rapidamente fechou negócio com uma garota de programa morena, que com eficiência entra no carro e partem.

No ponto, um trecho mal iluminado da margem da Quinta da Boa Vista, um casal com roupa de escola do municipal namora encostados nas grades. Mais dois colegas de sofrimento aguardam o ônibus com paciência e este milagrosamente chega rápido. Estava com o interior tão escuro que eu cheguei a pensar que estava indo para a garagem. Fiz sinal, parou, embarquei e além do motorista mais dois passageiros seriam os meus colegas de viagem nos próximos minutos. O veículo, com defeito no câmbio, irritava o motorista por não aceitar a terceira marcha e eu, reflexivo, relembrei como a vida dos pobres é difícil e como a ascensão social é quase uma lenda no Brasil.

As pessoas que pegam o 313 e o 665 são pobres, moram em lugares longínquos como Complexo do Alemão ou Pavuna, seus trabalhos são basicamente braçais, não intelectuais. É tudo contra: durante a jornada de trabalho ele não tem como dar uma escapadinha e estudar, o ônibus, lotado, trafega um vias congestionadas o que faz a viagem se tornar uma longa tortura. Não dá para ler pois a maioria viaja em pé e, mesmo que estivesse sentado, a iluminação interna do ônibus é péssima. Ao chegar em casa será quase um morto vivo com uma série de tarefas domésticas pendentes. Seus vizinhos e amigos de bairro são tão pobres e carentes quanto ele. O circulo se fecha ao não conseguir estimular o filho a ler. Talvez não tenha a mínima noção que a única saída deste inferno é investindo em conhecimento. Dele e dos filhos.

Jesus disse aos apóstolos, respondendo a um questionamento de Judas que "pois os pobres vocês sempre terão consigo, mas a mim vocês nem sempre terão" (Mt 26:11). A passagem de Jesus pela Terra foi curta, menos de 40 anos e os pobres são eternos. É paradoxal e surpreendente que Jesus diga categoricamente que Ele, Deus em carne, não esteja para sempre presente, convivendo com eles, mas o pobre, sim. Não vejo aqui uma crítica ao capitalismo, até porque a qualidade de vida dos pobres do tempo de Jesus são infinitamente melhores hoje. Isto é mérito principalmente da ciência, do aumento da produtividade e da economia de mercado. Uma vacina é um exemplo clássico de melhor ciência, que leva ao descobrimento da prevenção de doenças, com o capitalismo, que a permite chegar à população. Os pobres são vítimas eternas de um sistema cruel que os próprios pobres de certa forma participam. E participam por ignorância, conformismo e perpetuação reprodutiva. Vejamos cada uma.

A ignorância faz com que o pobre cometa pequenos delitos crendo que está a vingar-se ou que é inofensivo. O caso mais clássico é o roubo de sinal de TV por assinatura. Neste caso ele acredita que é indolor para a operadora porque o sinal já está lá e o seu consumo não afeta em nada o serviço prestado aos outros, além do fato dele deixar de pagar ser uma queda de receita ínfima. A sensação de vingança ocorre quando ele testemunha notícias de corrupção e se julga mais esperto que os políticos e empresários pirateando o serviço. O mesmo ocorre com outros serviços como eletricidade e água ou o jogo de videogame pirata. O ponto é que, se ele não tivesse acesso ao serviço de TV por assinatura nem ao videogame ele poderia estar usando este tempo para ler, estudar e aprender coisas novas. No lugar de melhorar como pessoa e tornar a sua mão de obra mais qualificada e produtiva e, como tal, mais valiosa e desejada pelas empresas, ele se emburrece cada vez mais, tornado-se mais vulnerável ao desemprego e aos salários mais baixos. A suposta economia com a TV a cabo e o jogo de videogame na verdade tem um curso altíssimo a longo prazo.

O conformismo faz o pobre aceitar a sua condição baseado no medo e em pessoas próximas. Isto não isto não é exclusivo de alguma classe social; a classe média é medrosa de doer, mas é no pobre que o conformismo tem os seus efeitos mais nefastos porque a classe média, por definição, tem uma vida melhor e mais confortável que o pobre e permanecer na mesma situação ad infinitum não é de todo mal. O pobre típico tem a autoestima baixa, ele não acredita que pode porque ele olha os seus amigos e generaliza. Se estamos todos no mesmo barco, o que eu tenho de especial para me destacar dos meus vizinhos? Absolutamente nada! O nosso cérebro é craque em generalizações.

O terceiro problema é o mais cruel, a perpetuação reprodutiva. Normalmente os pobres geram filhos mais cedo, quando a estabilidade econômica é um sonho remoto e a maturidade plena ainda não chegou. Boa parte destes filhos são indesejados, mas mesmo os desejados estão em condição de desvantagem antes de nascer. A quantidade de filhos por família também é maior entre os mais pobres, o que diminui a atenção individual que os pais podem dar. Os pais pobres conversam menos com os filhos e passam pouco tempo com eles, o que não os estimulam.

Não quero dar uma visão pessimista ou justificar a pobreza. Pelo contrário, eu modestamente sou um exemplo de como sair da maldição de Mateus 26:11. Meus pais  tinham pouca educação formal e papai morreu quando eu tinha seis anos (ignorância), morando num bairro muito pobre (conformismo) e geraram seis filhos (perpetuação reprodutiva). Qual o meu segredo? Qual o caminho de saída deste Labirinto de Creta?

Meu pai era filho de professor e valorizava a educação. Quando ele morreu o meu irmão número 1 tinha 26 anos e o número 2, 24. Ambos solteiros, fui tutorado e estimulado intelectualmente. Aos 14, o número 2 pagou um curso preparatório e me incentivou fortemente a tentar estudar numa escola melhor. O salto começou naquele distante março de 1986. Ao estudar numa escola de classe média em um bairro de classe média rompi definitivamente com a ignorância e o conformismo. Lembro de uma vez, por estímulo de um amigo, fazer a prova para sargentos do Exército. O irmão número 1 me deu uma bronca inesquecível: se quiser ser militar, que seja oficial e dispute uma vaga para a Academia Militar das Agulhas Negras.

Pense grande, pois você pode estando preparado estudando muito. Descobri, prematuramente no segundo grau, que a classe média não tem nada de diferente de mim na essência. A maioria dos meus colegas de bairro só descobriram a classe média ao entrar no mercado de trabalho, adultos, onde a soberba e humilhações são bem maiores. Não viram a semelhança.

Outros fatores, importantes, mas que eu considero menores: fui pai tardio, tenho apenas uma única filha e consegui um bom emprego que me permitiu fazer um curso superior numa escola federal.

Mas eu continuo conformista. Tenho a certeza que atingi o meu limite. Está bom. O próximo degrau quem pode subir é a Mariah. Ela esta sendo preparada desde antes do nascimento para este salto. Procuro ser o melhor e mais estimulante pai do mundo. Espero que não dê tudo errado e ela não vire uma adulta chata e mimada.




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